1 - Velhos Amigos
Os ventos outonais pesavam sob suas asas àquela noite. Voar, para Eralon Flare, não era uma necessidade, mas um prazer adquirido desde sua Bênção. A brisa turbulenta, a visão quase onisciente e a potência induzida pela altitude eram um deleite para qualquer predador: tudo abaixo de si eram pequenas presas em potencial. O Não-Nascido chamavam-no pelas costas, bem sabia, mas não se importava. Se não era respeitado por seus feitos, era temido, mesmo entre seus pares. Poucos tinham a coragem de insultá-lo frente a frente e menos ainda sobrevivam às consequências. Depois de duzentos anos, sabia que ser um dragão era seu destino.
Estava ansioso pelo que estava à frente. O Chamado fora direcionado a ele e a ele apenas. Poucos teriam a bravura necessária para tal feito, então seja lá quem houvera proferido as palavras ecoantes, seria alguém interessante. Naqueles dias, pouca coisa atraía seu interesse, salvo seu encontro com o Guardião dos Nomes. A voz que emitiu o Chamado não lhe era estranha, mas nenhum nome lhe surgiu em pensamento; não era um dragão, isso era claro.
As colinas se aproximavam rápido. Sob elas, sentia um complexo de cavernas, habitada por criaturas humanoides; um covil de ladrões, com certeza. As entradas, supostamente escondidas, não evadiam seus olhos, mas não era por elas que pretendia invadir. A terra, cada vez mais próxima, não lhe assustava. Com um clarão, seu corpanzil incendiou-se, deixando para trás um rastro flamejante. A colina chegou e o fogo tostou sua superfície; seu corpo, não mais sólido, ultrapassou terra e pedra e solidificou sua forma humana em um dos corredores, próximo ao coração do complexo.
Um dos habitantes veio logo investigar seu flamejante surgimento. Era um humano de corpo bem construído, vestes que combinavam metal e couro – que obviamente não combinavam entre si –, cabelos e pelos mal aparados e imundos, em suas mãos um gigantesco machado. Sem pensar, o bárbaro partiu para sua morte. Com um estalar de dedos, elas surgiram: primeiro as faíscas, que eram um prelúdio do inferno que correria a seguir; depois as chamas, que tomaram todo o corredor, localmente e por trinta metros de seus seguimentos principal e secundários.
Do que era um homem à sua frente, restou uma forma parcialmente reconhecível de cinzas. O calor fora forte o suficiente para carbonizar imediata e totalmente toda a matéria orgânica e inorgânica que um dia fora seu tolo inimigo. Os corredores agora eram completamente negros, do carvão que se acumulou por suas paredes e piso. Mais dez desapercebidas vítimas tornaram-se estátuas de cinzas, que começavam a desmoronar.
Eralon percorreu o resto do caminho desolado a pé. Suas roupas, ao contrário do que esperaria um espectador normal, pareciam rejuvenescidas pelo fogo: sedas escarlates e platinadas destacavam-se com especial brilho perante o negro carvão. Ao final do caminho, a caverna abria-se em um grande salão de pedra manualmente cavada. O fogo não chegara até ali e o salão parecia vibrar com duas presenças opostas, direta e figurativamente.
- Você tem algo que é meu. – disse uma voz, estranhamente familiar ao feiticeiro dragão, em tom neutro.
- E o que isso seria? – conforme se aproximava, podia sentir perfeitamente o emissor da segunda voz levantar ameaçadoramente sua arma, um machado, pelo peso.
- Está em suas mãos – respondeu a primeira voz, impassível.
- Seja lá quem você for, não vai sair daqui com nada! – e precipitou-se em salto contra o adversário.
Neste momento, Eralon chegou à entrada do salão. Um bárbaro, muito mais robusto e bem equipado que as estátuas de cinza voava pelo ar com um machado de metal avermelhado sobre a cabeça. Colocou toda sua força no golpe, percebia-se, um ímpeto antinatural e sanguinolento. Com um som metálico, o machado penetrou o pano que cobria o peito de sua vítima, encontrando pouca resistência no metal por baixo, e a carne. Sangue escorria em fartura.
Agora que Eralon reparou na face do homem atacado. Os longos cabelos negros e a barba por fazer. O meio sorriso desafiador. Não poderia acreditar, não estivesse presente. Os olhos, outrora castanhos e inertes, ganharam um brilho especial ao ver o próprio sangue. Depois de tantos anos, pensou Eralon, em júbilo.
A sombra do homem atacado pareceu crescer, tomando quase todo o salão e diminuindo seu adversário à imagem de uma criança. Lentamente, ele colocou a mão direita sobre a empunhadura do machado escarlate.
- Agora seja um bom garoto e solte – disse Slifer, a voz ameaçadora incitava o comum bárbaro a não aceitar seu pedido.
Talvez em um sinal de desafio, ou por simplesmente estar paralisado, o bruto permaneceu com as mãos na arma.
Muito rápido para seu adversário acompanhar e aparentemente alienado do ferimento em seu peito, Slifer tomou o machado de seu oponente com um sorriso no rosto. No segundo seguinte, o desaparecido herói colocou a mão esquerda sobre o ombro de seu oponente, como se educadamente pedisse licença. O corpo do bruto caiu para a esquerda de Slifer; a cabeça, à direita.
O sangue havia parado de correr em seu peito e a sanguinolência em suas feições deram lugar ao costumeiro meio sorriso. Olhou para um lado e depois para o outro, e se dirigiu a um odre no canto da sala, destampou-o, cheirou o conteúdo e sorveu um longo gole. Foi então que sentou-se na pedra mais próxima, espreguiçando-se e tentando se fazer confortável. Olhou para Eralon.
- Eralon! Que bom que você chegou! – disse, descontraidamente, como se não tivesse sequer a capacidade de brutalmente decepar um homem como acabara de fazer. Levantou o odre em direção ao feiticeiro dragão – Quer um gole?
*
Eralon não teve outra reação a não ser rir. Slifer o fitou, confuso.
- De todos os que eu não esperava encontrar aqui – disse o feiticeiro, recompondo-se.
- Bom te ver também – disse Slifer, sorvendo mais um pouco da cerveja – Você vai beber ou não?
- Diabos! – disse Eralon ao se aproximar – Passa pra cá.
Dividiram o odre por mais alguns goles.
- Ouvi dizer que você virou um dragão – disse Slifer, informal.
- Verdade – respondeu o feiticeiro – E você? Por onde esteve? E como diabos você está vivo!?
- Primeiro no Plano das Sombras, depois… por aí – respondeu o bárbaro – vi umas coisas, fiz outras tantas, em certo ponto percebi que não envelheci mais. Segundo Arcrest, foi um efeito do Plano das Sombras.
- Arcrest!? – disse Eralon, realmente surpreso – O desgraçado sobreviveu?
- Calma, cara! – disse o bárbaro, pacificador – Eu também fiquei surpreso quando descobri: fora da influência de Asnüminë, ele até que é gente boa. Lembra quando o Victor estava naquela fase de não matar? Acho que é basicamente a mesma coisa, haha. Ainda, ele é a razão de eu estar vivo agora, o filho da mãe careca me ensinou um bocado de truques.
- Quanto mais você sabe… – suspirou Eralon, pensativo.
- Fiquei sabendo que está rolando uma guerra no Oeste, com novos heróis e tudo – disse Slifer, sorvendo um gole um pouco mais longo e exaurindo o odre, que foi jogado de lado – E finalmente que os dragões estão apoiando Kerwal.
- Então você está sabendo bastante. É verdade, nós estamos apoiando o Guardião dos Nomes.
- Nós? Já está se considerando parte da raça mesmo, hã? – era uma pergunta retórica – Eu fiquei me perguntando: o que o cara poderia oferecer pros dragões ficarem tão dispostos a cooperar? Afinal, eles não pareciam muito contentes que Asnüminë ficasse andando por aí e agora eles estão dispostos a soltar outro jogador assim, do nada?
- Varkast – decretou Eralon – O Guardião dos Nomes ofereceu Varkast.
- Imaginei… – disse o bárbaro, pensativo – E você? De que lado está?
- Me ofereci para liderar uma tropa de dragões.
O ambiente ganhou peso rapidamente.
- Ah, é? – disse Slifer, com tristeza na voz – Você realmente está vestindo a camisa, não?
- Eu sou um dragão, afinal.
- Droga, eu preciso de uma bebida – disse Slifer, vasculhando o salão de pedra com os olhos.
Com um pensamento, surgiu nas mãos de Eralon uma garrafa de cerâmica com o melhor hidromel anão que já tinha provado. Também criou duas taças de prata, serviu os dois recipientes.
- Aqui – o feiticeiro ofereceu.
Slifer, sem cerimônia, tomou um dos cálices e o entornou de uma vez. Serviu-se de mais hidromel.
- Muito bom.
- Theros sabe que você voltou? Ele passou todos estes anos procurando por você – disse Eralon, tentando mudar o assunto.
- O fantoche dele nos encontrou, a mim e a Arcrest, na primeira semana que estávamos livres do Plano das Sombras – disse Slifer.
- Estranho, não fui informado.
- Eu pedi para que o fantoche mantivesse nosso retorno em segredo – decretou o bárbaro – Mas o verdadeiro mago, onde está?
- Ele está vasculhando outros planos há algumas décadas, pelo que soube – disse Eralon – e deixou aquele “fantoche”, como você chamou, no lugar. Não tive mais notícias.
- E o que ele acha de tudo isso? – Slifer retornou ao assunto.
- O “fantoche” toma uma posição neutra. Se ele está planejando algo por debaixo dos panos, não fiquei sabendo.
- E você acha que o enxerido do Theros não vai meter o bedelho?
Eralon riu, e sorveu mais um longo gole de hidromel.
- Vou verificar. Mas a profecia é sólida. Não acho que seja possível revertê-la.
- E Victor? Faldrin? Hemmet? Lyon? Cristopher? Arcond?
- Até onde sei, Hemmet, Cristopher e Arcond morreram. Lyon deve ter reencarnado em uma árvore ou algo assim, sinceramente não ouvi falar dele depois da batalha contra Asnüminë. Faldrin está em Crionashtur, e casado. Victor partiu para Asfária há alguns anos, mas não tive mais notícias. Kimagure sumiu completamente.
- Encontrei Kimagure no Plano das Sombras. Pobre alma, conseguimos libertá-lo, mas não acho que a insanidade tomou o melhor dele.
- Não sabia – disse Eralon.
- Eralon – disse Slifer, pela primeira vez completamente sério – se escolhermos ir contra Kerwal, o que você vai fazer?
- Prefiro não pensar nesta possibilidade.
Slifer levantou-se, tomou o resto de hidromel em sua taça. Dirigiu-se à caverna oposta à que Eralon tinha usado para chegar no salão de pedra.
- É melhor você pensar – disse o bárbaro, sem olhar para o feiticeiro, afastando-se – e pensar muito bem.
Eralon também se levantou. Runas flamejantes começaram a surgir circundando seus pés.
- Farei isso.
Antes de o teletransporte se completar, Eralon lembrou-se:
- Você teve uma filha, sabia disso?
- O fantoche me disse. Falecida. Ele me descreveu ela e eu fico pensando quem foi a mãe. Espero que tenha sido aquela camareira de Vastardel, ela tinha olhos azuis, um rosto bonito e – de costas, Eralon pôde ver que Slifer levantou ambas as mãos, em forma de semi-esfera, diante do peito – tinha uns belos…
E a magia se completou.
2 – Sobre Fantoches e Dragões
Estava em seu escritório administrativo quando começou. Todo o local fora designado para parecer como um antro de papéis e burocracia. Era o que se esperava dele. Seu disfarce como Theros Glannath, o Arquimago, o Grão-Mestre da Academia Áurea, por baixo dos panos Arauto do Olhar Etéreo já se tornara tedioso. Tinha sido criado por este motivo. Nem sabia, na verdade, se poderia agir de maneira diferente de sua programação. Seu criador, o verdadeiro Theros, havia deixado Faralchar quase uma centena de anos antes; sendo sua concepção unicamente para não deixar o mundo descobrir que o mago ele mesmo está ausente. Alguns descobriram, claro, especialmente os mais próximos de Theros, mas seu propósito estava sendo cumprido satisfatoriamente. Adotar um posicionamento neutro era sua implantada filosofia, agir somente através da Olhar Etéreo. O motivo das viagens de seu criador lhe era desconhecido: mesmo sendo criado a partir da vivificação da magia conhecida como Simulacro, pouco dos reais conhecimentos de Theros lhe foram transmitidos, propositalmente. Mas seria um tremendo equívoco chama-lo de inculto, pois ainda assim sabia mais do que qualquer criatura de Faralchar sequer deveria saber. Segredos, tantos segredos: arcanos, políticos, financeiros, históricos; alguns que realmente preferia não saber, assumia. Illya, uma das primeiras criações de Theros, o havia visitado antes para avisá-lo do que ocorreria naquela tarde; ela era uma imagem élfica, perfeita demais para se passar por uma comum alma mortal; tinha o dom da adivinhação, como era tecida para ter. Tome cuidado - ela dissera, mas não transmitia nada de preocupação em sua fala, não porque confiasse nele, mas por simplesmente ser incapaz de sentir tal coisa.
A torre começou a tremer repentinamente. Não era um movimento sísmico, mas sim as consequências do invasor ultrapassando cada uma das barreiras cuidadosamente preparadas para tal ocasião. Sabia que todas as proteções eram inúteis. Não as retirava mesmo assim. Os etéreos fios que teciam a realidade eram brutalmente destruídos e formavam ondas de choque enquanto se retorciam para o esquecimento. Sempre achou impressionante como a personalidade do conjurador interferia em suas ações arcanas; naquele momento, por exemplo, sentia como se os fios tivessem sofrido uma explosão e entravam em chamas, o fogo se espalhava no plano etéreo e causava caos e destruição, um fogo incontrolável e faminto por consumir; o que restava dos fios, pareciam cinzas se desfazendo em um braseiro. A sensação que o verdadeiro Theros passava eram bem diferentes: metódicas, comedidas, planejadas e precisas, como um cirurgião experiente atendendo um paciente importante.
Não sabia exatamente quando começara a detestar seu criador, mas desconfiava que já sentia um desconforto em sua presença desde a concepção. Afinal, fora criado para algo que o próprio Theros não queria fazer: tomar conta de seus inferiores, pois eram demasiado incompetentes para se protegerem, ser um símbolo de confiança e exemplo de determinação. Na verdade, era tão próximo de seu criador que compartilhavam o maior desejo: conhecimento. Não era o poder que o fazia seguir em frente, apesar de que superar um grande desafio era deveras recompensador, mas o contentamento de descobrir algo novo. Mas Theros não se podia dar ao luxo de criar um cérebro fresco, que pudesse aprender e admirar cada novo pequeno conhecimento que se apresentasse. Não poderia ter uma cópia de si perambulando por aí em incompetência decrescente. Seu desejo secreto era trocar de lugar com o verdadeiro mago, desbravar novos mundos e todos os paradigmas por eles criados.
O invasor surgiu em uma explosão de chamas. Com um pensamento, lançou algumas proteções sobre os livros e anotações para que não fossem danificados. Do começo dos ataques até a entrada do feiticeiro cronometrou dezessete segundos, anotou o número em um livro a sua frente e só então levantou os olhos do livro para fitar seu visitante. Eralon, em toda sua imponência vestido de um manto escarlate com detalhes platinados, parecia irritado.
- Você sabia que eu chegaria – disse Eralon Flare – Por que não suspendeu as proteções interdimensionais?
- Não poderia fazer isso – mentiu.
- Claro que poderia. Mas resolveu não fazê-lo par testar as magias – percebeu logo o feiticeiro – A questão é: isso é coisa sua ou de Theros?
- Não sei do que está falando – insistiu, sarcasticamente – Mas se o que diz é verdade, eu não seria capaz de responder a sua pergunta.
- Como queira – disse Eralon – Você sabia que Slifer tinha voltado a esta dimensão e não se preocupou em avisar a mim ou qualquer outra pessoa.
- A pedido dele. Pela aparência dele quando o vi, parecia que ele gostaria de um tempo para voltar a se adaptar.
- Arcrest estava com ele – decretou o feiticeiro – Nem isso foi o suficiente para ignorar o pedido?
- Não o considero uma ameaça, mas o acompanho de perto, se insiste em saber minha posição.
- Claro, seus espiões – concluiu Eralon, entediado – Nunca imaginei que Theros fosse escolher agir pelas mãos de outros em um assunto dessa magnitude. Enfim, ele provavelmente o criou para esse tipo de maquinação.
Não saberia dizer se o feiticeiro-dragão emitira aquelas palavras intencionalmente para atingi-lo. Afinal, como poderia ele saber seu descontentamento com sua posição.
- Mas não para isso que vim – continuou o ilustre visitante – Vim para saber onde está Theros.
- Mesmo se soubesse, não lhe diria.
A ira de Eralon inflamou o plano etéreo em chamas escarlates. Isso não aconteceria nem com o mais poderoso dos magos. Somente um dragão poderia afetar o ambiente com seu estado de espírito apenas. Eralon Flare era, por isso, uma das criaturas mais perigosas de Faralchar.
- Isso é… inadmissível – conteve-se o feiticeiro – Não acredito que Theros viraria as costas para o que o Guardião dos Nomes planeja fazer. Meu posicionamento você já deve saber, se está cumprindo seu dever apropriadamente.
- Ou se eu possuo o mínimo de senso crítico – completou – Seu posicionamento é claro. Ainda assim, não saberia dizer onde está Theros Glannath.
- Você…
- Entretanto – interrompeu o feiticeiro – Considerando o que conheço de meu criador, ele está ciente da situação há muito mais tempo que você. E tudo leva a crer que a profecia que Kerwal quer cumprir é imutável. Inclusive, talvez seja esse mesmo o objetivo de suas viagens. Por mais que ele me tenha criado a sua imagem, ainda não posso prever suas ações e pensamentos no momento presente.
O dragão, pensativo, fitou o fantoche.
- E você? A que pé está nisso?
Foi pego de surpresa pela pergunta. Seria Eralon tão astuto para perceber sua real frustração. Havia feito diligências, sim. Havia, inclusive, encontrado os heróis que supostamente fariam a profecia se cumprir. Mas nunca sentira a necessidade de criar um posicionamento para sim, um que fosse diferente do papel de observador que seu criador lhe havia dado. Levou em consideração o que sabia. Não chegou a uma conclusão lógica que lhe agradasse.
- Não me decidi ainda – disse, finalmente.
Eralon o examinou com olhar penetrante. O feiticeiro estava cogitando destruí-lo ali mesmo, certamente, pensava. Mas chegaria à decisão lógica: mesmo se conseguisse destruir o fantoche, não arriscaria entrar em confronto com Theros de maneira tão aleatória. Não achava que Eralon tinha qualquer inimizade direcionada ao verdadeiro mago, muito pelo contrário, eles dividiram um importante papel para Faralchar, juntos; esse tipo de coisa costuma unir os envolvidos muito mais que comungar constantemente em uma taverna.
- Você sabe onde se encontra Victor Arrius? – disse o feiticeiro.
- Não posso vê-lo – limitou-se a dizer. Sabia muito bem o que acontecera com o clérigo, mas não via vantagem em contar ao dragão.
- Se Theros retornar, avise-o que quero falar com ele.
E assim terminou a conversa. Eralon virou-se e desapareceu em um portal ígneo. Anotou os pontos importantes daquela visita no livro que continuava a sua frente. Folheou as folhas anteriores para conferir todos os dados. Fechou o grande tomo. Recitou as palavras, uma runa áurea brilhou suavemente na capa. Sua mensagem havia sido enviada.
3 – A Sabedoria da Figueira
Trisha retornava da missão à Torre de Ermaras, ponderando o que tinha descoberto. O Visionário ainda estava sob o domínio de Loenin Seth. Felizmente, a Imortal pouco ou nada sabia de como controlar o artefato tão poderoso, provavelmente usando-o apenas para mantê-lo fora das mãos dos outros Imortais. Reuniu todas as informações que tinha conseguido encontrar sobre o bastão adivinhador o que resultou em uma pilha de mais de dois metros de papéis, livros e anotações.
”Encontre-me fora da torre.”
A mensagem mágica ecoou em sua cabeça. Não conseguiu sentir a personalidade de seu interlocutor, pensou se deveria usar algum tipo de ritual para descobrir mais sobre quem lhe contatava.
”Agora.”
Havia um tom austero que lhe lembrou seu pai. Ponderou que seria melhor se apressar até os jardins da Torre da Senhora da Magia. A vegetação ali era tratada com os melhores encantos, muitos deles executados como experimentos arcano-druídicos. Com os ataques ocorrendo ao Norte de Turshec, muitas pessoas começaram a fugir para o sul e outras tantas acharam que seria útil estar nas asas da torre dos magos, então existia ali agora um grande número de comerciantes – buscando sobreviver com o escambo –, famílias inteiras buscando trabalho nos campos arredores – administrados pelos magos ricos o suficiente para adquirir ali um pedaço de terra – e mendigos – vivendo de qualquer coisa que lhe fosse dada. Não avistou nenhum mago que lhe saltasse aos olhos ou os procurasse. Quase desistindo da infrutífera busca, parou sob uma figueira especialmente alta, procurando alívio contra o sol do meio da tarde na sobra da copa da árvore. Encostado no tronco retorcido, havia um mendigo coberto em um manto cinzento, as mãos negras envolvidas num figo bastante roxo, mas não o comia.
- Você conhece a natureza do Figo? – perguntou o homem negro, tateando o chão por seu cajado, ainda mais escuro, como se para conferir que estava ali.
- Temo que as artes naturais não sejam meu maior forte, senhor – disse Trisha, sem pensar muito a respeito.
- O Figo, basicamente, é uma flor que se abre ao inverso. O fruto que comemos, que é na verdade uma conjunção de frutos, é o resultado da polinização de um conjunto de flores da figueira feminina que já nascem encapsuladas em uma vagem que se tornará o que chamamos de casca da fruta falsa – explica o mendigo, olhando contemplativamente para o figo em sua mão – o mais interessante, porém, é que a polinização só ocorre por causa de uma espécie específica de vespa que bota seus ovos no interior das vagens que mencionei. O inseto bota seus ovos nas vagens da árvore macho, morrendo no processo, gerando outras vespas que ali vivem. As vespas macho não possuem asas e têm como único objetivo na vida fertilizar as fêmeas, ainda na vagem masculina, e abrir um caminho para que suas esposas-irmãs escapem, já fertilizadas. As fêmeas, então, saem voando a procura de outra vagem para continuar o ciclo. Se uma dessas fêmeas, entretanto, penetrar uma vagem de figueira fêmea não encontra, pela anatomia intrínseca da planta, local apropriado para pôr seus ovos e morre sem completar seu objetivo natural principal, procriar. Mas esta minúscula tragédia é o que permite a existência do figo que comemos, pois a vespa fêmea leva o pólen da vagem onde nasceu para a vagem onde pereceu, permitindo a transformação das flores inversas em frutos que, juntos, formam isto – e ofereceu o figo, apetitosamente roxo à Trisha, espantada pelo conhecimento daquele homem que acreditava ser apenas um mero foragido.
- Acredito que o julguei mal, senhor – disse a maga, tomando em suas mãos o figo.
- Oh, minha querida – disse o homem que agora se levantava, revelando a face: o cabelo negro, ponteado de cinza, preso em um cuidadosamente amarrado rabo de cavalo; os olhos revelando uma sabedoria que só poderia ser percebida em alguém com o triplo de sua aparente idade –, você não faz ideia do quanto.
- Grão-Mestre!? – disse Trisha, percebendo quem era o homem e instintivamente ajoelhando-se em reverência – Eu peço perdão. Não fui capaz de pressentir sua presença.
- Não peça perdão – disse o arquimago, com expressão séria – minha presença não é para ser sentida nem pelos próprios Deuses, quem dirá por uma mortal ainda tão jovem. Conte-me sobre os nossos heróis.
Theros Glannath caminhou em direção ao norte, parou um instante para tocar o chão com seu cajado – como se para testar a maciez da terra.
- Siga-me, Trisha.
Enquanto o arquimago pisava no chão que há pouco testava, o tecido da realidade vibrou, criando uma onda que rapidamente se espalhou pelo seu corpo enquanto o portal os engolia para o destino traçado magicamente. Sem palavras, praticamente sem gestos, Trisha sabia que tudo aquilo não deveria ser possível para um mago comum, o que só a fez respeitá-lo ainda mais. Quando teve sua inscrição negada na Academia Áurea, acreditava que a figura de Theros Glannath era apenas uma história criada para propaganda e a detestou por ter sua entrada barrada para os estudos mágicos. Também não reparou que era muita sorte para uma jovem maga que, semanas após ter sua entrada na Academia negada, ser procurada por um mago viajante que precisava de uma assistente. Tudo fora planejado pelo Olhar Etéreo, eles recrutavam a partir dos candidatos da Academia, mas não poderiam ter ligação direta com a escola. Trabalhar para o Olhar Etéreo era a experiência mais recompensadora, e assustadora, que tinha na vida; na organização pode elevar seus conhecimentos ao máximo, desenvolver seus poderes psíquicos natos, e participar de operações que influenciavam o destino do mundo. Seguiu a figura que uma vez considerara fictícia.
Ao atravessar o portal, estavam na torre do mago, em um escritório muito bem arrumado, com tantas prateleiras de tomos e pergaminhos arcanos que causaria inveja até na própria Fílias. Na grande mesa de mogno, sentavam-se dois Theros Glannath. Aquilo surpreendeu Trisha mais do que deveria. Um dos magos, o que sentava do lado atendido da cadeira era ligeiramente mais velho, como se dava para perceber no brilho de seus olhos, e poderia apostar que fora com este que conversara nos jardins da Torre de Ermaras. O mais novo, incrivelmente, parecia ser o mais surpreso e apresentava um misto de alívio e desprezo na expressão. A conversa que travavam terminou abruptamente, com a chegada de Trisha.
- Faça isso – diz o Theros mais velho, enquanto sua contraparte se levanta da mesa e segue para a gigantesca porta do lado oposto do escritório.
- Sente-se – disse Theros, apontando com a mão direita para uma poltrona ao lado da mesa.
Trisha não pôde deixar de notar as veias mais negras que invadiam o pulso cor de ébano do mago. Acomodou-se na poltrona.
- Conte-me sobre nossos heróis – disse o arquimago, com um ligeiro tom de desprezo na voz… Ou seria nostalgia?
- São um grupo bem incomum – começou Trisha.
- Isso é um eufemismo, minha cara – interrompeu Theros – Se meu falecido irmão pusesse suas mãos neles, ganharia muito dinheiro com as bizarras diferenças entre si: um servidor de Hartol que controla a Tempestade, um assassino de boas intenções, um assassino de não tão boas intenções e um lutador tatuado que se aventura pelo arcano. Vou poupar-lhe o trabalho de descrever as características óbvias. O que eu quero saber é o que você acha de cada um deles. Comece com Thorian, por favor.
- Oh.. – suspirou Trisha, e se sentiu tola por achar que teria que contar toda a história de sua missão com os heróis, e de certo modo ofendida por saber que Theros não queria perder um minuto sequer com ela – Thorian é o mais confiável de todos eles, ao meu ver. Ele possui bom coração e, até onde eu saiba, tem o interesse de mudar o mundo para melhor. Seu relacionamento com os espíritos não é muito bom, já que a tradição destes vai contra os ideais de seu escolhido. Ele também parece ter um Carisma inato que faz com que as pessoas logo se afeiçoem a ele. Ele está disposto a lutar com todas as forças pelo que acha ser o correto.
- Sua fé a Hartol foi alterada de alguma maneira por ser o Filho da Tempestade?
- Não saberia dizer ao certo – respondeu a maga, pensativa – mas me parece que ele até o momento não vê que uma coisa interfira na outra.
- Ele está errado – sentenciou o arquimago, desdenhoso – Passe para Lyan, por favor.
- Ele foi criado pela Ordem da Pena Dourada e descobriu recentemente que seus pais eram nobres corruptos, da mesma laia dos quais ele costuma caçar. Teve uma descoberta sobre o início da ordem e parece que agora porta uma arma forjada com o sangue de Ermaras.
- Não é seguro que um mortal tenha uma arma assim – diz Theros, e tomou nota em um livro de capa preta que consultava vez ou outra conforme Trisha relatava sua opinião – Ele está preparado para enfrentar aquela que quase foi arruinada pelo criador da sua ordem?
- Sem dúvidas. Loenin Seth é o braço aristocrático do Culto, um inimigo embrenhado no jogo de poder do Reino Branco. E possui o Visionário.
- Sim, ela precisa ser eliminada rapidamente, se a Milícia de Prata tem a intenção de vencer essa guerra contra os Zanin. Sobre o jovem Kawami?
- Souhen é… obscuro. A história de seu clã é complicada e seu suposto aliado na milícia parece que era um agente duplo e parece ter sido convertido ao Culto, além de estar agora subordinado a Taiga, um dos Imortais.
- Souhen, huh? – diz o mago, implicando que sabia mais do que isso – Enfim, em que pé você diria que ele está nisso tudo?
- Difícil dizer, mas posso afirmar com certeza que ele tem interesse total em aniquilar Taiga.
- Claro que tem – confirmou Theros, displicente – E Lletor?
- Ele tem grande potencial arcano, tanto que é uma pena que ele tenha sido criado por um monge. Ele agora está estudando sobre Espíritos e Magia Sutil, campos que eu não saberia se sou capaz de ajuda-lo. Mas sua história é trágica. Seu pai biológico tentou sacrificá-lo para conseguir poderes demoníacos e, por um tempo conseguiu, época que Lletor teve que presenciar o maldito diabo matar pessoas que ele amava com seu próprio corpo…
- Vejo que se afeiçoou muito a este – disse Theros, inexpressivo.
- Eu… – Trisha sentia as bochechas queimando e sabia que estavam vermelhas e sem pensar muito, disse: – Ele me lembra o senhor, Grão-Mestre.
Theros ergueu os olhos do livro na direção da maga, uma das sobrancelhas arqueada em tom inquisitivo, interessado.
- Talvez as mãos que manipulam nossas cordas neste teatro de marionetes sejam as mesmas.
Trisha não entendeu o que o mago dissera, mas era o esperado ao se conversar com alguém cujo conhecimento e sabedoria eram centenas de vezes superiores aos seus. Preferiu não externar sua confusão.
- Acho que é o que você pode me dizer por enquanto – decretou o mago, finalmente – Tem mais um lugar que precisamos visitar, venha.
Levantando de sua cadeira, Theros deu alguns passos e bateu com seu cajado de ébano no tapete e logo atravessaram um novo portal.
Do outro, Trisha se viu em um corredor de mármore cuidadosamente esculpido, diante de uma porta de metal escuro, puxado mais para o azul marinho do que para o preto, amplamente decorado com runas douradas em alto relevo, escritas que se viu incapaz de traduzir. Sentiu como se algo a cobrisse. Olhou para Theros.
- Isso é só uma precaução – disse, voltando o cajado que estendera para a maga para a lateral do próprio corpo – Não diga uma palavra sequer, mesmo se falarem com você.
- Quem? Grão-Mestre, onde estamos?
- Vamos invadir um conselho de guerra – disse o arquimago, sem emoção – agora fique calada e observe.
Theros então tocou a porta metálica com sua mão esquerda, fechando os olhos e se concentrando por um momento. Depois de analisar as barreiras ali colocadas por alguns segundos, ou era isso que Trisha pensava que o mago estava fazendo, tirou de baixo do manto uma bolsa pouco maior que um cantil de couro. Abriu o recipiente e do bocal tirou quatro cristais octaédricos feitos de um material negro e transparente, que logo imaginou se Diamante Negro. Logo depois os itens flutuaram no ar, afastaram-se um pouco deles e voaram violentamente contra a fresta da porta metálica em quatro pontos diferentes. As presas de ébano vibraram e todo o ambiente vibrou quando as barreiras quebraram. Theros então pôde abrir a porta com a mente.
A maga se viu adentrando uma sala feita também de mármore claro, com dezessete tronos do mesmo material, dispostos em círculo. Apenas nove estavam ocupados. Não demorou para que Trisha percebesse quem eram aqueles seres, especialmente devido à aura que emitiam sem qualquer esforço aparente: a jovem humana de vestes brancas e expressão piedosa com certeza era Tullï; ao lado dela, o homem com armadura brilhante e semblante altivo deveria ser Hartol; ao seu lado Hurst os encarava, aparentemente ofendido, com sua grande maça sobre o colo; Askardin alisava com a mão direta sua afiadíssima espada de dois gumes e olhava para o nada, entediado; nas cadeiras opostas estavam Arkfalas, seminua e coberta de folhagens vivificadas, e Nartäriel sorrindo e agitando uma taça com a mão esquerda; Lárin assumia a forma de uma mulher por volta dos quarenta anos, sem expressão e o rosto coberto por um véu quase transparente; Norgar, um anão vestido em armadura ricamente decorada com os mais preciosos metais e pedras, parecia indignado e buscava com os olhos Ermaras em busca de uma resposta a altura; a Senhora da Magia ela mesma assumia a forma de uma elfa altiva e coberta de mantos prateados.
Como era de se esperar, o primeiro impulso de Trisha foi curvar-se, mas Theros não fez movimento sequer.
- Qual é o motivo desta interrupção, Theros Glannath? – disse Ermaras, em tom austero. A voz da deusa tomou todo o salão e subjugou a vontade de Trisha, que só não caiu no chão pelo poder das proteções sobre ela invocadas.
- Ele veio ouvir – disse Lárin, a voz ecoando pelo salão.
- Ele se intromete, incauto – diz Hurst – Mesmo sendo um dos mais respeitados, Theros Glannath ainda é um mortal. E não deveria pôr os pés neste salão sem um convite adequado.
- Sim – diz Norgar, os olhos expressando descontentamento – Este é um salão para tratar dos assuntos dos Primeiros. Um mortal não tem o que tratar aqui. Uma punição é adequada.
- Ora, baixinho – diz Nartäriel, e ri levemente – Não vamos nos precipitar.
A provocação faz com que o Senhor dos Anões olhe para o elfo com raiva explícita. Ele estava para levantar-se de seu trono quando Tullï intervém.
- Ele não precisa de mais punição do que já o aflige – diz a Senhora da Vida, com clara expressão de pena nos olhos, que fitam o mago, mas este a ignora.
- Theros Glannath! – a voz de Ermaras se sobrepõe às outras novamente, fazendo o salão tremer – Diga seu objetivo ao estar aqui.
- Peço perdão pela interrupção – mas sua expressão facial não expressava arrependimento sequer – Vim para ouvir, e ver com meus próprios olhos. Mas não vim para ouvir e para ver nenhum de vocês, meus senhores – então Theros fita um dos tronos vazios, causando ligeira confusão em todos os divinos, à exceção de Lárin – Vim para ouvir a ele.
De traz do trono de mármore claro para o qual o arquimago, e a maioria dos presentes, vinha um ruído de palmas. As mãos que o produziam logo saíram da sombra da estrutura e a luz revelou um humano vestido em manto dourado e trajava em seu rosto um generoso sorriso.
- Não poderia esperar menos do Grande Theros Glannath – disse o Kerwal e fitou Trisha e o mago – E obrigado por terem servido de penetra primeiro, seria muito desconfortável para todos os presentes ter sido eu a abrir aquela porta.
- Guardião dos Nomes? – Norgar deixou o corpo se acomodar em seu trono, surpreso.
Todos os Deuses exceto, novamente, Lárin não conseguiram esconder a expressão de genuína surpresa.
- O que significa isso? – Askardin se pronunciou pela primeira vez, a mão direita segurando firmemente a empunhadura da espada larga.
- Oh senhores – disse Kerwal, displicente – Eu não preciso mais de permissão para estar em qualquer lugar. Meus poderes já se igualam aos seus neste mundo e só falta um passo para minha Ascensão – os deuses pareciam atônitos, até temerosos – E podem culpar a si mesmos pelo infortúnio que isso gerará para vocês! Eu até poderia ter perdoado o cárcere…
- Ficaste preso porque sua liberdade era perigosa – interrompeu Lárin, as mãos apertando o braço do trono de mármore, uma lágrima escorrendo a face – Eras perigoso demais para o teu próprio bem. Não houve um dia sequer que o pensamento de tua dor não me atormentava…
- Querida Mãe, eu entendo – diz Kerwal, notadamente alterado por algo que parecia… pena, ou seria saudade. Mas logo voltou ao tom cínico anterior – Vocês precisavam de algo para evitar um caos temporal, as coisas estavam andando em ritmos diferentes demais, precisavam de um paradigma vivo para padronizar o tempo no Plano Material. Acreditem, eu entendo. Não os perdoo, mas entendo. Mas o motivo de não os perdoar e o motivo de eu ter planejado tudo que fiz por milênios não é meu cárcere. Não. – e então o Guardião dos Nomes explodiu em raiva incontida, suas palavras soando como trovões no grande salão, fazendo rachar sua estrutura, dois tronos se quebraram enquanto ele esbravejava – Eu os odeio por sua incompetência! Vocês se perderam em picuinhas ridículas entre si e tiraram os olhos do verdadeiro Inimigo! Vocês ignoraram todos os avisos do Criador, temendo seu poder o dilaceraram e criaram o Destruidor! E Eles sofreram por sua causa! O Destruidor me libertou enquanto vocês criavam birras entre si! Ele arriscou sua existência para conter o perigo que vocês já deveriam estar combatendo desde as eras primevas! Eu vou eliminar qualquer um de vocês que tentar me impedir! Eu vou cumprir o dever que vocês ignoraram! Desistam agora e me poupem o tempo a ser desperdiçado em mais uma guerra de deuses!
- Isso é um absurdo! – disse Hartol, levantando-se do trono de mármore, exasperado – O Inimigo que você menciona já foi derrotado há milênios! Você só está em uma busca insana por mais poder! Por uma vingança infantil!
- Se me vingo – diz Kerwal, recompondo-se – é pelo bem de todos os mortais e imortais deste mundo e de todos os outros tantos mundos que compõem Faralchar.
- Isso é uma afronta – diz Hurst, também levantando-se – Não precisamos ouvir tais acusações infundadas. Não tem nenhuma prova, Guardião dos Nomes.
- Eu pude ler o destino do Destruidor – respondeu Kerwal, desesperançado – Mas vocês não acreditariam em minha palavra, de qualquer maneira.
- O último Agente foi derrotado pelo Destruidor – disse Ermaras, analítica – Lárin, o que você vê do Inimigo?
- Eu – lágrimas correm abertamente no rosto da Deusa do Destino, que fita o Guardião dos nomes que também expressa tristeza – Eu não vejo o Inimigo que disseste, filho meu.
- Acho que já ouvimos o que tínhamos que ouvir – diz Askardin, levantando-se.
Um a um, os deuses desaparecem de seus tronos até que restem apenas Kerwal, Theros e Trisha na sala.
Trisha não sabe o que dizer. Tudo aquilo era coisa demais para ela! Quem era esse Inimigo que Kerwal alegava? Era o Guardião dos Nomes realmente tão poderoso quanto um dos Grandes Deuses? Ele mentia? Quem era o Criador? E o Destruidor gerado de sua dilaceração? O quanto destas perguntas poderia Theros responder? E porque este a trouxera ali?
- Não digam que eu não tentei – disse Kerwal, esboçando novamente um sorriso cínico, mas este sorriso não parecia mais só um sorriso cínico para Trisha – E vocês o que acham?
- Que você fez um belo teatro – diz Theros – Assuma que é, no mínimo, imprudente deixar todas as intrigas divinas de lado por um inimigo que nem a Dama do Destino pode ver.
- Eles não podem ver o que não existe, ou melhor, o que deixará de existir – diz Kerwal, colocando o sorriso de lado – Este Inimigo surgiu para destruir toda a existência em si. É dever do Destruidor enfrenta-lo e eu farei o que puder para ajuda-lo.
- Estou ciente dos seus preparativos.
- E está ciente dos heróis, claro – o sorriso volta ao rosto do Guardião dos Nomes – E qual seria a posição de Theros Glannath no meio disso?
- Analisando os prós e contras. Se por um lado eu tenho grande respeito por alguns dos deuses, em especial Ermaras e Hurst, por outro novos deuses são bem mais fáceis de destruir. Dói-me expressar isso em alto e bom tom, mas caberá aos novos heróis a decisão e eu os auxiliarei da maneira que for mais adequada.
Tal resposta do arquimago fez o sorriso de Kerwal se expandir.
- É bom saber que ainda resta algum bom senso em você, Theros – diz o Guardião dos Nomes – De qualquer modo, sabe muito bem que minha Ascensão é inevitável.
- Oh, claro que sei, não há o que fazer com relação a isso – diz Theros, encarando o deus nos olhos – Mas depois disso há muitos modos de exterminá-lo.
E então eles se encaram por um instante. Trisha podia sentir a tensão se formando nos Fios do Éter e apostava que eles estavam tendo uma conversa mental.
- Você não ousaria – disse Kerwal, e o sorriso lhe esvaiu da face.
- Você subestima o prazer que sinto ao arrancar o sorriso insolente da face de um deus – decretou Theros Glannath. Pela primeira vez, Trisha via o mago sorrir.
Em um instante, o Guardião dos Nomes não estava mais lá. E Theros voltou a sua apatia costumeira.
- Grão-Mestre – arriscou Trisha – Há muita coisa que não entendi. Mas a que mais me preocupa é: aquele grupo tão incoeso e diferente será o responsável por uma decisão tão importante para a história de Faralchar? Isso é prudente?
- Minha querida – diz Theros olhando para a maga, quase paternal – Lembra do conhecimento que lhe transferi sobre a figueira? Lembra que lhe informei que a vespa fêmea que adentra um figo feminino não consegue escapar das garras da morte naquele fruto?
A maga acenou positivamente com a cabeça.
- Heróis são as vespas que conseguem se libertar.